
“OS CUIDADORES TAMBÉM PRECISAM DE CUIDADO” – O CUIDADOR SOCIAL DE UM PROGRAMA COMUNITÁRIO COM PESSOAS IDOSAS (PMC) EM TEMPOS DE COVID-19 NO BRASIL
O Brasil conta com um programa pioneiro e internacionalmente reconhecido de cuidado domiciliar do idoso chamado Programa Maior Cuidado (PMC) (Lloyd-Sherlock & Giacomin, 2020; World Health Organization, 2021). Este foi criado em março de 2011 pela Prefeitura de Belo Horizonte, tendo sido implementado no decorrer de três gestões distintas na prefeitura, estando sempre sediado na Secretaria Municipal de Assistência Social, em estreita atuação intersetorial com a política municipal de saúde. O PMC é fruto do trabalho de um Grupo Intersetorial, com o objetivo de:
“(…) apoiar as famílias no cuidado domiciliar de rotina a idosos semi-dependentes e dependentes que vivenciam situações de vulnerabilidade social pela fragilização de vínculos familiares e/ou sociais; pela ausência de acesso a possibilidades de inserção comunitária. Prevenindo situações de risco, exclusão e isolamento social” (Prefeitura de Belo Horizonte, 2019, p. 18)
A Prefeitura de Belo Horizonte contrata uma organização social civil como prestadora de serviços e responsável pelo recrutamento e treinamento inicial dos cuidadores atuantes no PMC. O salário-base do cuidador é o salário mínimo, com uma jornada de trabalho de 10 a 40 horas semanais para atuar junto a um pequeno número de famílias. Realizam trabalhos de apoio às famílias com idosos em regiões carentes de Belo Horizonte. O apoio ocorre na organização e realização do cuidado do idosos na residência (na prática de ações de higiene pessoal e gerenciamento da administração de medicamentos, como exemplo), bem como no referenciamento a serviços públicos de saúde quando necessário, como atendimento com especialidades médicas e exames.
Trata-se de um programa comunitário cuja assistência é levada pelo cuidador social até os lares de idosos, em regiões mais carentes. O trabalho do cuidador é acompanhado por um supervisor da empresa contratante e por gestores e referências técnicas da assistência social, e por Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) e Centros de Saúde. Já se sabe que este arranjo “tem fortalecido a coordenação entre agências, incluindo revisão mensal de casos conjuntamente” (WHO, 2021, p.27) e considerado como um programa referencial de atendimento ao idoso no Brasil, em países de média e baixa renda (Lloyd-Sherlock & Giacomin, 2020) e no mundo (WHO, 2021).
A atuação do profissional da ponta do PMC, ou seja, do cuidador social, é essencial para o desenvolvimento do programa. De forma similar a outros programas e iniciativas em todo o mundo, o profissional de linha de frente tem sido considerado como ator principal no combate à pandemia, uma vez que se encontra em contato direto com o público, na entrega de políticas públicas e orientações das mais diversas no enfrentamento do coronavírus (Østergaard, 2021; Cox, Dickson & Marier, 2021).
A literatura de implementação na linha de frente, conhecida na área de política pública pelos conceitos de atores de nível de rua ou linha de frente, ressalta a relevância de se estudar, dentre outros conceitos e conexões, as relações que existem entre o profissional de linha de frente e profissionais que atuam – de forma distinta – na gestão de um programa ou política pública (Lipsky, 2010). Isso se deve em especial a lacunas existentes entre os profissionais, tendo em vista o modo distinto como vivenciam, percebem e priorizam os problemas no cotidiano da implementação. Enquanto o profissional de linha de frente objetiva de forma mais imediata atender as demandas do público, o gestor detém-se mais nas problemáticas de gestão e constrições sistêmicas, visando ao atendimento de objetivos e alvos determinados (Lipsky, 2010, [Discussaded in Chapter 1, p.24-25]). Ademais, trabalhos realizados com profissionais de linha de frente na pandemia chamam a atenção para vários dilemas próprios da linha de frente ou nível de rua, dentre eles o dilema entre autopreservação e desenvolvimento do serviço (Østergaard, M. Møller, 2021).
No caso de agentes comunitários de saúde (ACS) no Brasil, que também realizam visitas nas casas do público-alvo, os dilemas relacionados a reorganização, garantia de condições de trabalho e incremento da vulnerabilidade no trabalho aparecem como questões que tem caracterizado a atuação desses agentes na pandemia (Maciel et al, 2020; Lotta et al., 2022). Ademais, o conceito de atores de linha de frente como (re)fazedores de política pública, e relacionado ao de discricionariedade, ambos de Lipsky (2019), foram empregados, como exemplo, para gerar conhecimento sobre o trabalho dos ACSs em Goiânia em contexto de violência contra a mulher (Coutinho and Saddi, 2019). Em relação ao trabalho mais específico de ACSs com idosos, um estudo realizado em Fortaleza demonstrou que os ACSs foram capazes de realizar com sucesso as visitas domiciliares e triagem de fatores de risco, a partir do aprimoramento de seu conhecimento e competências sobre necessidades dos idosos dependentes de cuidados (Neto, J.B.F., de Moraes, G.L.A., de Souza Aredes, J. et al., 2021). No âmbito do PMC, o trabalho de linha de frente e sua relevância e dilemas são protagonizados pelo trabalho desenvolvido pelo cuidador social do programa.
Este artigo tem por fim compreender e caracterizar a atuação deste professional da ponta, assinalando temas/ aspectos de política pública que demonstram sua relevância e condições de trabalho na implementação do PMC na pandemia. O trabalho efetua uma análise qualitativa rápida de política pública para entender – de forma ainda preliminar – aspectos característicos da atuação dos cuidadores sociais do PMC durante a pandemia, e na percepção das referências técnicas (RT) da Assistência Social e Saúde. A coleta de dados incluiu: a) entrevistas realizadas junto a três RT de Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e duas RT de Centros de Saúde (CS), que coordenam e acompanham a atuação dos cuidadores sociais do PMC nesses dois setores; b) 24 entrevistas para analisar problemáticas concernentes a vacinação; e ainda c). o primeiro relatório do PMC, para mostrar outras evidências produzidas pelo programa antes da pandemia (Prefeitura de Belo Horizonte, 2019); notas de observações das reuniões dos Grupos de Trabalho (GTs) nos CRASs. As entrevistas foram categorizadas e analisadas segundo seis grandes temas associados ao contexto, processo e impacto do trabalho do cuidador social no decorrer da implementação do PMC durante a pandemia. O relatório evidencia outras formas de impacto do PMC pré-pandemia, como indicador das capacidades do PMC de efetuar mudanças e adaptações. As notas das reuniões dos GTs são utilizadas para refletir sobre possibilidades de aprimoramento destes encontros.
Temas relacionados a iniciativas adotadas e desafios para realização do trabalho nos permitem entender alguns dos dilemas associados ao contexto da implementação do PMC na pandemia. Já os temas de feedback e motivação no trabalho, assim como a interação entre cuidadores e RT salientam fatores particulares (como aprendizagem e adaptação) que caracterizam o processo de trabalho do cuidador social do PMC durante a pandemia. Por fim, a avaliação geral do técnico sobre o cuidador social e o impacto que o cuidador social exerce e pode exercer sobre família e cuidador familiar nos possibilitam refletir sobre as capacidades do PMC em efetuar mudanças e preparações para uma nova crise após a COVID-19.
As entrevistas foram realizadas nos meses de março a outubro de 2021 na cidade de Belo Horizonte, no estado de Minas Gerais no Brasil. Foram autorizadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa René Rachou, Fiocruz-MG (CAAE: 96033418.9. 0000.5091) e International Development Research Ethics Committee da University of East Anglia (Project Code: MR/R024219/1).
1. Contextos: iniciativas e desafios em meio a COVID-19
INICIATIVAS DE POLÍTICA
Na pandemia, o trabalho do cuidador se deu num contexto de implementação de medidas de higiene e isolamento social, com o fechamento de lugares públicos e atividades comerciais não essenciais. Como ocorrido em outras partes do mundo (Underschultz and Barber, 2020), estas medidas possuíam distintos graus de adesão, tendo em vista sua adoção tardia e mesmo a geração de distintas formas de descrédito público ou percepção adaptativa em relação à importância delas.
Os cuidadores desenvolveram o seu trabalho num contexto de medo de contaminação e baixa confiança nas medidas governamentais (sobretudo durante o 1º ano da pandemia). As referências técnicas percebem que os cuidadores sociais do PMC adotaram não apenas medidas de proteção comuns, mas também conseguiram implementá-las com flexibilidade e resiliência. Caracterizavam-se pelo uso rápido das medidas de proteção e do protocolo, curta interrupção das visitas seguida de diálogo e retorno do trabalho; maior interação e diálogo com as famílias no retorno, poucas recusas em retornar/participar.
- Rápido uso de medidas de proteção e protocolo
Dentre as iniciativas adotadas durante a pandemia os cuidadores da ponta utilizaram-se do uso de equipamentos de proteção, bem como de medidas de afastamento/isolamento imediato tal como consta no protocolo oficial da Secretaria de Saúde sobre a COVID-19.
Existe na Secretaria de Saúde um protocolo. A partir dos sintomas elas já são encaminhadas para um setor da prefeitura para fazer o exame e o afastamento é imediato (CAS01).
- Interrupção seguida de retomada baseada no diálogo
Verificou-se ainda a interrupção inicial do trabalho, seguida de trabalho remoto, conversas com a família e reinício do trabalho presencial
Os planos iniciais eram fechar e fazer contato com as famílias. Depois mudou, no primeiro momento o atendimento foi suspenso por um período pequeno. Começamos a fazer o atendimento remoto, um acompanhamento por mim por telefone. (…)mas em pouco tempo retornamos (CAS03)
- Diálogo com a família, recusa de poucas famílias
O retorno do trabalho do cuidador social deu-se mediante diálogo e aproximação com a família, resultando tanto na volta do cuidador (nos casos em que família ou idosos são mais dependentes do apoio do cuidador) como em casos em que a família se recusou a voltar a participar do programa durante a pandemia
Mas como temos idosos que demandam atendimento pela vulnerabilidade começamos a avaliar a necessidade do programa e conversamos com as famílias. Alguns familiares optaram por não retornar com o cuidador, outros idosos tinham grande necessidade de retornar o cuidador. (CAS03)
DESAFIOS
Os principais desafios dos cuidadores sociais da linha de frente, como percebido pelas RT, estavam associados a: dilemas individuais e de trabalho, não priorização das vacinas contra a COVID-19 para o cuidador, uso de transporte público e risco de contaminação, perda de apoio cotidiano/específico das unidades básicas de saúde, a necessidade de melhorar o suporte profissional e emocional
- Dilemas individuais e da função
Em meio à adoção dessas novas iniciativas de combate a pandemia, referências técnicas consideram que o trabalho do cuidador social é caracterizado por dilemas entre cuidados individuais e realização da função. Na opinião das referências técnicas, no decorrer da implementação do PMC durante a pandemia, o cuidador social teve que enfrentar desafios como: dilemas entre o medo de serem contagiados e a realização do trabalho, a ocorrência do próprio contágio, e a redução do número de cuidadores para o trabalho.
- Não-priorização da vacinação e seus impactos – gerando vulnerabilidades na linha de frente
Problemáticas concernentes às questões de vacinação são vistas, pelas RT do PMC, como fatores urgentes e limitantes para a própria manutenção ou implementação do trabalho do cuidador social do PMC na linha de frente durante a pandemia. A mais relevante ou primordial, foi a ausência de priorização do cuidador social na campanha de vacinação contra a COVID-19 em Belo Horizonte (Prefeitura de Belo Horizonte, 2022), resultando na vacinação tardia de muito deles, com exceção daqueles que se inseriam em algum grupo prioritário, como o de comorbidades ou de uma faixa etária mais elevada.
(…) até o momento não tivemos nenhuma orientação quanto à vacinação para os cuidadores; isso eu acho que é a maior falha até agora do programa [de vacinação]. (CAS01)
O aumento do número de cuidadores e a vacinação destes cuidadores que é urgente. (CR16)
Além disso, a não-priorização do cuidador social na vacinação contra COVID-19 impactou a condição física e emocional dos cuidadores, bem como o processo de implementação do PMC na linha de frente. Essa não-priorização da vacina resultou em impactos para o serviço e para o cuidador, como apresentado nestes excertos:
Não podemos visitar, não tomamos vacina e nem estamos no plano de vacinas e é um risco para nós e para os idosos mesmo eles já estando vacinados. (CR01).
O cuidador que foi em uma casa que todos foram contaminados ficou com muito medo de ter se contaminado também. Agora todos foram vacinados a primeira dose, então já é um certo alívio. Mas ao mesmo tempo eles tem medo de ficar sem atendimento e serem demitidos. (CR06)
Assim, os seguintes fatores, relacionados a não-priorização da vacina, emergiram das entrevistas:
- A paralisação de visitas, dada a percepção do risco embutido para famílias e cuidador social;
- O contágio de alguns cuidadores social pelo coronavírus, e consequente sobre carga de trabalho para os demais.
- O medo do cuidador social ou de se contaminar ou de transmitir o vírus, uma vez que visitava pacientes de risco nos lares, e utilizava o transporte público como condução.
- O medo de perder o trabalho, tendo vista a contaminação ou paralisação de visitas.
As referências técnicas do PMC percebem a necessidade de incluir o cuidador como grupo prioritário de vacinação, o que ocorreu com os ACSs e os profissionais de saúde da linha de frente. E assim trazem à luz a forma como a não-priorização da vacina gera fatores limitantes para a implementação do trabalho deste ator social em visitas a famílias de idosos durante a pandemia. Existe, desta forma, uma relação estreita entre a não-priorização da vacina e o acirramento de questões de segurança de trabalho e de vulnerabilidade do cuidador social em tempos de pandemia. Tais evidências contextuais, bem como suas relações/impactos, apontam para dois blocos de iniciativas – um político e um de gestão, que poderiam aprimorar o processo de trabalho na ponta em tempos de pandemia:
– efetuar campanha ou pressão junto a administração pública para inserção do cuidador em grupos prioritários, e
– adotar formas alternativas de transporte e estratégias adicionais de apoio emocional para o trabalhador da ponta em tempos de pandemia.
- Uso do transporte público e risco de contágio
O uso de transporte público, em contexto de demora da vacinação e receio de contágio, acirra o dilema entre medo e execução do trabalho na ponta.
[…] Insegurança, medo de terem que continuar sem estar vacinadas, de ter que pegar ônibus. Medo de ter que transitar, medo de levar o vírus para a casa do idoso e do idoso pegar. Está sendo uma época difícil nesse sentido. (CAS01)
Alguns cuidadores prestam cuidados para duas ou mais famílias em um único dia de trabalho, precisando transitar entre os domicílios dentro do território, aumentando o risco de contágio.
- Perda do apoio dos centros de atenção primaria a saúde
Em meio a estes desafios, os cuidadores sociais ainda perderam o apoio dos centros de saúde – sobrecarregados com pessoas sintomáticas – durante um período na pandemia:
O cuidador perdeu a base de apoio que era o centro de saúde que era mais próximo do domicílio para almoçar… o CRAS é muito longe para esse suporte. É um desgaste muito grande do cuidador nesse momento. (CAS03)
- Necessidade de apoio profissional e emocional para o cuidador
As RT percebem a necessidade de adotar uma dupla forma de apoio para o cuidador social: profissional e emocional. A necessidade de maior treinamento do cuidador devido à pandemia, também é vista como fator que agrava os desafios do trabalho. Esta questão se mostra ainda associada à necessidade de apoio emocional em meio a ambientes de violência e vulnerabilidade.
Deveria ter uma maior capacitação das cuidadoras, que elas pudessem ter um apoio da gestão, da empresa que as contrata. Elas precisam de um apoio emocional pois lidam com dificuldades e situações de violência e vulnerabilidades. Que às vezes o emocional delas fica muito abalado e não é porque elas não saibam lidar, mas porque precisam desse apoio (CS02)
As complexas questões e desafios enfrentados pelos cuidadores sociais da linha de frente durante a pandemia não impediram esse profissional de atuar na comunidade. Diante dos dilemas associados ao contexto pandêmico, as RT percebem a importância de se estabelecer formas duplas de proteção aos cuidadores sociais da linha de frente: profissional e emocional.
2. Relação entre cuidadores e referências técnicas: gerando aprendizado e adaptação
A interação entre referências técnicas e cuidadores foi caracterizada por dois momentos distintos e o reconhecimento da necessidade de adoção de uma estratégia nova: contatos mensais para revisão dos problemas; contato próximo com a família utilizado como estratégia de monitoramento do trabalho do cuidador; e percepção da necessidade de inclusão do cuidador nas reuniões da Assistência Social ou Grupo de Trabalho.
Por meio dos contatos mensais de revisão de problemas
As reuniões presenciais nos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) foram recomeçadas em 2019. Elas ocorrem com participação da coordenação da Saúde do Idoso e dos técnicos do PMC, tendo por objetivo conhecer a dinâmica e os desafios locais. Esta etapa possibilitou uma aproximação com os atores e equipes atuantes na execução do PMC (Prefeitura de Belo Horizonte, 2019). Trazendo também à tona temas sensíveis de vulnerabilidade social e emocional relacionados ao trabalho da linha de frente:
Tentamos esse retorno mensal, alguns ficam muito gratos quando os idosos conseguem melhorar ou demonstram gostar dos cuidados. Mas também há casos esporádicos de cuidadores que se sentem mal com ofensas ou com a forma que são tratados pelo idoso. (CAS03)
Como fruto desta interação mensal, verificou-se o nascimento de trabalhos pioneiro de apoio psicológico e emocional ao cuidador na regional da Pampulha:
“Tivemos uma experiência exitosa em um Grupo de Trabalho local deste distrito. O psicólogo (da rede SUS) reunia isoladamente com os cuidadores antes da reunião, como forma de dar algum tipo de suporte. Cuidadores também precisam de cuidado. Vivenciam uma realidade muito dura… drogas, maus tratos, negligência, violência. Eles precisam de voz também. Tivemos essa experiência mais pró-ativa da nossa equipe que talvez seja algo interessante para ser replicado e institucionalizado” (Prefeitura de Belo Horizonte, 2019, p.54).
Também foi possível verificar, através do acompanhamento e observação dos encontros nos GTs dos CRAs, que esta aproximação mostra-se caracterizada por fatores complexos e desafiantes, tais como: distintas capacidades de organização dos encontros pelos diferentes CRASs, e necessidade de se remir e aproveitar o tempo dos mesmos, criando formas para o incremento da viabilização da participação de todos. Os encontros poderiam ser fortalecidos, por exemplo, por meio da criação uma estrutura de representação da participação e aperfeiçoamento da agenda formal das reuniões. Tais desafios, consistem em dilemas de aproximação podem ser investigados mais a fundo em estudos futuros.
O tema da violência, bem como outras formas de risco e vulnerabilidades, em visitas domiciliares, fazem parte da literatura da implementação na ponta, em especial no caso de agentes comunitários de saúde, que atuam nos lares das pessoas cadastradas nos Centros de Saúde, e sobretudo em áreas com alto nível de desigualdade social. No Brasil, a teoria de burocracia de nível de rua [dentre outras teorias ou conceitos], foi utilizada para entender como o ACS acaba efetuando mudanças/ ou adaptações da política pública/programa na linha de frente, ao agir de forma discricionária quando deparando-se com situações de violência doméstica contra a mulher nos lares visitados (Coutinho e Saddi, 2019). No caso do PMC, análises seguintes poderiam trabalhar a relação existente entre violência/risco ou vulnerabilidades e mudança da política pública na linha de frente durante a pandemia.
Por meio do acompanhamento de um parente (mediante contato próximo com familiar)
Uma das referências técnicas relata que foi efetuado um acompanhamento próximo da família, e como forma de se obter um retorno de como estão sendo os cuidados oferecidos por este cuidador.
Geralmente optamos por colocar um cuidador recém-contratado em um idoso que já é acompanhado pelo programa do qual temos um bom retorno da família. E mantemos o máximo possível de contato com esses familiares para acompanhar como está sendo os cuidados e a presença do cuidador dentro do domicílio. (CAS03)
Este relato de uma referência técnica sobre uma forma inovadora de monitoramento, e com potencial para geração de novos conhecimentos e aprendizagem, enseja uma pergunta significativa para a gestão e pesquisa: como o monitoramento via família poderia contribuir, e em relação ao cuidador recém-contratado, para acelerar o processo de familiarização do cuidador com famílias vulneráveis e com o novo trabalho na ponta? Trata-se de questões pertinentes à literatura de implementação na linha de frente, uma vez que esse monitoramento inovador pode gerar facilitadores de aproximação entre a gestão, família/público-alvo e trabalhador da ponta, tecendo relações entre os atores envolvidos, e, assim, mostrando-se como fator relevante para o fortalecimento da implementação da política pública. O conceito de facilitadores de aproximação (integrative policy drivers), por exemplo, tem sido empregado para estudar a implementação na ótica dos trabalhadores de linha de frente na atenção primária no Brasil (Saddi et al., 2021b). No caso do PMC, esta aproximação já na fase inicial do trabalho, via monitoramento familiar, possui potencial para criar facilitadores de aproximação ou de integração entre as partes durante no processo. As relações entre monitoramento da linha de frente e aproximação com gestão poderiam ser aprofundadas nas análises seguintes do PMC.
Percepção da necessidade de incluir o cuidador na formulação:
No PMC, tanto o relacionamento direto mensal com o cuidador, quanto o acompanhamento mediante contato familiar contribuíram para gerar aprendizado sobre os desafios da política, fazendo o gestor perceber novas possibilidades de ajustes/ adaptações no processo de interação entre liderança e trabalhadores da ponta (Prefeitura de Belo Horizonte).
Agora eles identificam as demandas e passam para nós e para o supervisor, para levar as demandas para a reunião. Mas estamos tentando um acesso para eles, nesse mês estamos tentando um espaço para eles participarem no CRAS. É diferente quando eles participam e os cuidadores também falam e se expressam diante do cuidado. (CAS02)
Segundo as referências técnicas do PMC, tanto o encontro mensal com o cuidador quanto o acompanhamento por meio do contato familiar contribuíram para gerar aprendizado sobre os desafios da política e realizar ajustes/adaptações no processo. Esse processo de melhoria tem sido reconhecido tanto em nível local/nacional quanto internacional (Prefeito de Belo Horizonte, 2019; OMS, 2021). Seria interessante verificar em mais detalhes, nos próximos estudos, como isto ocorreu.
Além disso, sabemos pela teoria e experiências em políticas públicas que processos colaborativos de tomada de decisão e formulação contribuem para aumentar o aprendizado sobre a política, impactando em sua eficácia e resultados (Ansell, Sørensen & Torfing, 2017). O desejo ou o reconhecimento da referência técnica, em uma das entrevistas, de envolver os cuidadores da linha de frente nas discussões de formulação de políticas estão de acordo com os achados da teoria e experiência de políticas públicas. Ademais, a literatura sobre ACS na atenção primária, no Brasil, mostra que a não-participação dos ACS – bem como de outros profissionais de linha de frente – em processos de discussão ou formulação com a gestão ou tomadores de decisão, ou um nível frágil de relacionamento entre ambos, contribuem para o baixo conhecimento e envolvimento dos ACS no programa, bem como resulta em menor motivação no trabalho. De forma que esta aproximação entre gestão/formulação e linha de frente mostra-se como condição a ser considerada no aprimoramento da política pública (Saddi et al. , 2021a). Portanto, no caso do PMC, e levando-se em conta suas singularidades e complexidade de implementação e formulação, deve-se esperar que o processo de aprendizagem e adaptação do PMC seja ainda mais aprimorado quando os cuidadores sociais da linha de frente forem incluídos no processo de reformulação ou discussão de políticas, no nível da gestão, conforme apontado por uma das RT.
Tendo em vista a possibilidade de se potencializar ainda mais o aprendizado e aprimoramento do programa por meio de formulação/decisões colaborativas, seria importante verificar, nas pesquisas futuras, se e como essa inserção se encontra em andamento, extraindo lições para futuras melhorias em Belo Horizonte e replicação do programa no Brasil. Na continuação da análise das entrevistas, pretende-se utilizar esses três tipos de aprendizagem (por meio de reuniões, monitoramento indireto e colaboração na formulação de políticas), buscando ver como eles podem influenciar o processo de trabalho na linha de frente e impactar os resultados.
3. Feedback e motivação como mecanismos para melhorias no trabalho dos cuidadores
Referências técnicas percebem que a motivação dos cuidadores, associada a realização de feedbacks da assistência social e saúde sobre o trabalho deles consistem mecanismos que explicam inovações no atendimento ou mesmo melhoria no PMC no decorrer da pandemia. A existência da motivação com feedback associa-se ao fato de os cuidadores terem sido capazes de buscar atividades lúdicas e criativas para os idosos.
Eu não as vejo com sobrecarga, cansadas ou reclamando. Pelo contrário, vejo elas sempre motivadas por esse retorno que elas têm e a gente tem uma questão importante, é que a equipe deste CS é uma equipe muito presente. Então as demandas que as cuidadoras trazem com relação a saúde são respondidas de uma forma muito rápida e isso é mais uma questão que motiva, elas têm esse apoio rápido da saúde (CS01)
Então eu as vejo muito motivadas com o trabalho, buscando sempre melhorar, buscando atividades lúdicas, elas procuram muito lá no CRAS esses jogos, desenhos e questões de artesanato (CS01).
Análises realizadas com agente comunitário de saúde e outros atores de linha de frente – médicos e enfermeiros – demonstram que a ausência de ou baixo feedback contribuem para desmotivar o trabalhador de linha de frente. Trazem também a evidência de que a motivação se mostra essencial na condução da implementação. Revela ainda que nos casos em que houver um nível maior de feedback e maior motivação, o programa consegue impactar (fortalecer) mais o processo de implementação e resultados (Saddi et al. 2021b and 2021a). No caso do PMC, portanto, a motivação e o feedback podem ser mais investigados como mecanismos que levam/ podem levar à melhoria e inovação do trabalho na linha de frente, e valeria a pena olhar para essas variáveis e suas inter-relações na continuação da análise das entrevistas do PMC.
4. Efeitos do trabalho dos cuidadores sociais do PMC
4.1. Sobre o cuidador e contexto familiar em famílias socialmente vulneráveis
De acordo com as referências técnicas os cuidadores do PMC tiveram um efeito positivo na organização familiar e resolução de velhos problemas / conflitos associados ao cuidado do idoso em famílias socialmente vulneráveis. Verificou-se também um efeito positivo na vida do cuidador familiar que se encontrava sobrecarregado no cuidar do membro idoso da família.
As famílias se sentem muito recompensadas e motivadas com o trabalho, então esse resultado positivo vem diretamente do idoso e da família, os próprios idosos e familiares trazem isso para os cuidadores e elas se sentem motivadas, elas ficam buscando novas atividades para fazer com aquele idoso (CS01).
4.2. Sobre o aprimoramento dos cuidados com idosos socialmente vulneráveis, e efeitos positivos no sistema de saúde e finanças públicas
Análise realizada antes da pandemia demonstra que outras formas de impacto – em contexto não-pandêmico – podem ser geradas pelo PMC e seu cuidador social, e no que diz respeito ao apoio a famílias vulneráveis e a efeitos sobre condições de saúde e sistema: gera cuidados com efetividade, ao aliviar a sobrecarga do cuidador familiar ou ao assumir o papel de cuidador em casos de omissão familiar; evita hospitalização desnecessárias de idosos e, ainda, implica em economia para os cofres públicos.
“Há o caso de uma idosa muito demandante, que reside com o marido também fragilizado. Não tinha condições para o autocuidado. Antes do PMC, havia sido internada várias vezes por desidratação. O PMC evita essas hospitalizações desnecessárias porque o cuidador intervém nesses casos. Eles acionam o Centro de Saúde que toma as providências sem mesmo ter que enviar para um hospital. No caso dessa senhora, sem o PMC, ela já teria falecido há muito tempo”. (Prefeitura de Belo Horizonte, 2019, p. 54)
“Temos muitos casos de insuficiência familiar. Familiares que não sabem ler, escrever, administrar medicamentos. O cuidador vem para ajudar essas famílias. Tem idoso que tem família, mas ao mesmo tempo não tem… tem o caso de um idoso com 10 filhos, mas somente 1 cuida dele. Quando o cuidador chegou na casa ele ajudou até na saúde do filho desse idoso que estava sobrecarregado. O cuidador acaba ajudando em cadeia… e ajuda até na qualidade de vida do cuidador familiar”. (Prefeitura de Belo Horizonte, 2019, p. 54)
“A existência do Programa economiza muito para o Estado. Além disso, estamos investindo em quem realmente precisa, pessoas carentes e necessitadas. A presença do cuidador influencia positivamente na evolução da sua doença” (Prefeitura de Belo Horizonte, 2019, p. 54).
Com a chegada da pandemia, o PMC já se encontrava em implementação e com bons resultados, impactando as famílias e idosos inseridos no programa. Tais resultados podem ser atribuídos, como exemplo, a rotinas de trabalho construídas e vínculos formados entre referentes e cuidador social na ponta. Sabe-se que a pandemia do coronavírus trouxe desafios na reorganização e repensar do trabalho, exemplificado por alguns dos fatores analisados acima. No entanto, o fato de o programa possuir bons indicadores – antes da pandemia – e ter conseguido se manter em contexto de crise pandêmica, sugere que o PMC possui as capacidades (organizacional e outras) necessárias para retomar seu processo de trabalho, como a incorporação de medidas de preparação para uma próxima crise/pandemia, realizando, assim, adaptações e aprimoramentos sustentáveis no período pós-COVID-19.
6. Percepção / avaliação / efeito geral do trabalho dos cuidados sociais no tempo da Covid
Apesar dos desafios decorrentes da implementação das medidas de combate à COVID, referências técnicas externam uma avalição geral positiva da atuação dos cuidadores na ponta, nos lares. Atribuem um alto nível de engajamento e comprometimento ao trabalho realizado pelo cuidador social do PMC.
Eu falo que temos um privilégio, porque todas as 5 são muito envolvidas com o trabalho, muito responsáveis e elas tem um envolvimento profissional muito bacana. Elas se sentem muito recompensadas e motivadas com o trabalho (CAS01).
A análise revela, por fim, que mesmo em meio a pandemia, e mais especificamente aos diversos tipos de desafios para a realização do trabalho de cuidador social, associados a dilemas entre cuidado pessoal e desenvolvimento da função de cuidador, estes profissionais conseguiram manter e retomar seus trabalhos de cuidador nos lares, em áreas vulneráveis de Belo Horizonte, lançando mãos do diálogo com a famílias e aproximação com a gestão. Tiveram seus processos de trabalho caracterizados por um alto novel de motivação, fortalecido pelo feedback da gestão, impactando diretamente (gerando) ações de resiliência que vão além do mero cuidado epidemiológico em tempos de pandemia. Suas ações revelam fatores – à primeira vista contraditórios – que fortalecem um atendimento domiciliar mais integrado em tempos de pandemia: em meio a dilemas e desafios, mas com aproximação da gestão e da família, motivação, feedback, resiliência no cuidado e impacto no cuidado e na família.
Referências
Lloyd-Sherlock P, Giacomin K. Belo Horizonte’s pioneering community care programme for older people. Global Platform for the Rapid Generation and Transfer of Knowledge on COVID-19 and older adults in low- and middle-income countries; 2020. Em: https://corona-older.com/2020/11/24/programa-maior-cuidado-um-programa-pioneiro-de-atendimento-comunitario-para-idosos-no-brazil/. Acesso em 15/12/2021.
World Health Organization. (2021). Framework for countries to achieve an integrated continuum of long-term care. World Health Organization. https://apps.who.int/iris/handle/10665/349911 . Licença: CC BY-NC-SA 3.0 IGO
Prefeitura de Belo Horizonte (2019). “1º RELATÓRIO PARCIAL: Melhorando a efetividade e eficiência dos serviços de cuidados sociais e de saúde para idosos”. Marco de 2019. Belo Horizonte.
Østergaard, M. Møller. (2021). The Dilemma between Self-Protection and Service Provision under Danish COVID-19 Guidelines: A Comparison of Public Servants’ Experiences in the Pandemic Frontline. Journal of Comparative Policy Analysis: Research and Practice. Volume 23, 2021 – Issue 1: Pages 95-108. https://doi.org/10.1080/13876988.2020.1858281
Cox, R. H. Dickson, D. & Marier, P. (2021). Resistance, Innovation, and Improvisation: Comparing the Responses of Nursing Home Workers to the COVID-19 Pandemic in Canada and the United States. Journal of Comparative Policy Analysis: Research and Practice. Volume 23, 2021 – Issue 1. Pages 41-50. https://doi.org/10.1080/13876988.2020.1846994
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